Receita culinária do Professor Galopim de Carvalho(*).
É encantador ouvir o Professor falar sobre culinária Alentejana do antigamente, do tempo em que se comia o que havia, o que se podia, com moderação , sobriedade e muito respeito pelos recursos limitados e sem desperdícios.
(*) António Galopim de Carvalho
Director emérito do Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa.
Professor de Geologia e investigador na Universidade de Lisboa e Professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
PEIXE FRITO APROVEITADO EM ESCABECHE.
(adaptado de "Com Coentros e Conversas à Mistura", Âncora Editora, 2019)
Naquele tempo, início dos anos 40, do século que passou,…
“A mãe, porém, preferia que eu fosse à praça. Os familiares da Porta Nova não vendiam mais barato. Pelo contrário.
Vinte escudos (dez cêntimos do euro) no bolso, lá ia eu, rapaz com 11 ou 12 anos, quase todas as manhãs, de alcofa na mão e algumas recomendações no sentido. Tantas vezes me incumbi dessa tarefa que, por fim, era lá na praça, junto aos produtos expostos, face ao que havia e não havia e consoante os preços do dia, que eu acabava por decidir o destino a dar ao pouco dinheiro que sempre levava.
– Olha, destina lá tu! – Confiava-me a mãe, sem vagar nem paciência para pensar o que seria o almoço e o jantar desse dia.
– Se o cação estiver em conta, podes comprar, mas então tens de trazer coentros. Se não, trazes carapaus para fritar e tomate pouco maduro para salada. Para a sopa, ou trazes espinafres, ou nabiças... Olha, escolhe lá tu! – rematava, esgotada a imaginação. – Compra feijão encarnado para pôr de molho para amanhã.
Um dia, havia tanto carapau pequenino (os joaquinzinhos) que dos dez tostões o quilo, do seu preço habitual, passou para dez tostões três quilos. Não hesitei um segundo:
– Três quilos de carapaus! – Pedi à Delfina, peixeira muito nossa amiga.
Chegado a casa, ufano da bela compra realizada, foi com surpresa que vi a aflição da mãe, face à enormidade da tarefa que lhe dei.
– Amanhar três quilos de carapaus dos pequeninos! E o tempo que eu vou levar, com tanta coisa ainda para fazer? E o azeite que isto gasta? Onde tinhas tu a cabeça, rapaz?
Deitar fora não estava, porém, nos conceitos de economia da mãe. Fui ao Anselmo aviar mais uma garrafa de azeite. Almoçámos e jantámos, nesse dia e no outro, carapaus fritos, primeiro quentes, depois frios e, no fim, de escabeche, que só é bom quando temperado com o próprio azeite da fritura”.
Receitas
Sobrados de uma refeição de frituras de carapaus, sardinhas, solha, peixe-espada, pescada ou outro peixe em filetes, aproveite-os numa confecção que a minha mãe fazia em tempo de Verão e a que dava o nome de "escabeche frio".
Uma vez fritos e bem frios, disponha-os numa travessa funda (das de ir ao forno) e tempere-os com 4 a 6 dentes de alhos bem esmagados, 2 a 3 folhas de louro e tantos pezinhos de salsa quanto o número de filetes.
Regue-os com um fio do azeite da fritura, vinagre a seu gosto e, por fim, cubra-os com água fria e reserve-os para servir no dia seguinte.
É certo que os fritos e, sobretudo, o azeite ou o óleo de os fritar estão longe de constituir um alimento saudável. Mas esta receita não é a de uma confecção a ingerir com frequência. Começa por ser um prato a servir em tempo quente, aí uma vez por ano, no Verão, o que não traz qualquer problema.
Na nossa casa também se fazia um escabeche a quente que também se podia servir frio. Neste, os condimentos essenciais são o azeite, o vinagre, a cebola, o alho e o louro.
Cortam-se as cebolas às rodelas, fatiam-se os dentes de alho e levam-se amolecer ao lume, numa frigideira com o azeite e louro. Tempera-se com sal e pimenta e, só no fim, se rega com o vinagre. Deixa-se ao lume por mais um ou dois minutos. Era com esta confecção que, num recipiente adequado, se cobria o peixe frito que, assim, se pretendia valorizar ou conservar
Notas a propósito:
Sobre o Escabeche
O escabeche é uma confecção típica do chamado al-Andaluz, trazida pelos árabes com o nome de “iskabaj”, o que quer dizer alimento com vinagre. Tanto pode ser preparado para valorizar uma fritada, habitualmente de peixe, como para a conservar durante mais tempo, dadas as qualidades conservantes do vinagre, numa pática já conhecida dos romanos.
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Sobre o azeite
Na casa de meus pais, até por volta dos anos 50, sempre se cozinhou em azeite, incluindo o fritar. A partir de então, o ataque cerrado feito a este nosso tradicional produto da azeitona por nutricionistas, dietistas e pelas grandes cadeias agroalimentares, levaram a generalidade dos consumidores a recear o seu uso e a trocarem-no, em grande parte, pelo chamado “óleo de fritar”. Nesta convicção, a minha mãe passou a usar em todas a suas confecções uma mistura de azeite e óleo do tipo Fula, na proporção de 1 para 3, no propósito de, dizia ela, “não fazer tanto mal à saúde”. Acontece que o azeite sobreviveu, tendo-se afirmado como um produto alimentar altamente conceituado. Parafraseando Alfredo Saramago, o mestre na gastronomia, “…o azeite, de mau passou a óptimo”,… “vendo-se hoje reabilitado”.
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